O NASCIMENTO DO LOBO DA ABISSINIA
- foscaworld
- há 4 dias
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É preciso imaginar um tempo em que a terra ainda não tinha nome, uma época em que o mundo era uma catedral de silêncio pousada nos telhados do céu. É ali, nesta estética de vertigem, nesses planaltos onde o ar falta aos corações mornos, que começa o nosso drama.
De um lado, havia a Raposa. Ela não era um simples animal das florestas, mas um relâmpago ruivo, uma chama que havia arrancado sua liberdade das correntes do cativeiro. Ela corria para não morrer, carregando consigo aquela incandescência aterrorizante daquelas que sabem que parar é se perder. Do outro, havia o Lobo. Uma estátua de sombra e poder, esculpida na gravidade. Ele carregava o peso da matilha, o dever sagrado, aquela armadura invisível que protege, mas que isola. Ele era o guardião da ordem, belo e terrível como um precipício.
O encontro deles não foi um acaso, mas uma tecelagem narniana. Era uma noite de equinócio, naquele interstício frágil onde o dia hesita em ceder à noite. Eles se encontraram em uma clareira de geada, um território neutro suspenso fora do tempo. Ele viu nela a vertigem que lhe faltava. Ela viu nele a âncora que fugia, mas que secretamente esperava.
Então, eles correram. E que corrida! Não era um jogo; era uma febre. A Sombra e a Chama, lado a lado, rasgando a névoa. Nesse impulso, tentaram a alquimia impossível: fundir a liberdade selvagem e a lealdade da matilha. Durante aquele instante suspenso, eles eram um só. Eram uma criatura perfeita, ébria de absoluto.
Mas o amor, vejam bem, é um esporte de alta altitude, e nem todos conseguem respirar lá. O Lobo, esse herói aos olhos de todos, sentiu o medo gelar suas veias. Não o medo do inimigo, mas o medo do desconhecido. Ele recuou diante da imensidão daquela liberdade que a Raposa lhe oferecia. Ele escolheu retornar à segurança de suas correntes douradas, ao calor tranquilizador e sufocante de sua matilha. A Raposa, por sua vez, o viu se afastar com a dignidade trágica das rainhas sem reino. Ela não o reteve. Ela sabia que algumas chamas são muito vívidas para corações prudentes. Ela partiu sozinha na neve, seu coração lambido como uma ferida aberta.
Poderíamos pensar que a história termina aqui, nessa triste constatação. Mas a natureza abomina o vácuo, e os grandes amores, mesmo inacabados, sempre deixam uma marca na matéria. Dessa colisão, dessa energia louca liberada pela corrida e pela ruptura, nasceu uma entidade. Uma criatura da alma, um espírito materializado pela força de seu desejo. Na neblina dos cumes, então, surgiu o Lobo da Abissínia.
Observem-no avançar na lenda. Ele é a lembrança viva do abraço deles. Ele é um paradoxo sobre quatro patas, um enigma ruivo que assombra as montanhas. Ele carrega a pelagem de fogo da Raposa, vibrante e indomável, mas manteve a silhueta esguia e as extremidades escuras do Lobo, como se a sombra de seu pai ainda acariciasse seu pelo. Ele é belo, de uma beleza rara e ameaçada, frágil como os sentimentos mais puros.
Este guardião dos cumes, Volpinina, como o chamam os antigos, carrega a dupla natureza em si sem se quebrar. Observem sua vida secreta: ao cair da noite, ele se junta aos seus. Ele dorme enroscado junto aos seus irmãos, honrando a necessidade de calor, de tribo e de proteção herdada do Lobo. Ele aceita o vínculo. Mas assim que a aurora surge, assim que a fome o atormenta, ele se levanta e parte sozinho. Absolutamente sozinho. Ele se recusa a caçar em matilha. Ele se torna, então, pura liberdade, percorrendo as imensidões geladas em solitário, honrando assim a memória feroz da Raposa que não dependia de ninguém para sobreviver.
Ele é ao mesmo tempo solidário e solitário. Ele é o amor que permanece e a liberdade que perdura.
Dizem que, às vezes, quando a névoa desce sobre os vales e o mundo fica embaçado, pode-se vislumbrar um ser misterioso. Ele corre sem ruído, fantasma ruivo entre as rochas. Ele não procura ninguém. Ele vigia. Ele é o Lobo da Abissínia, guardião melancólico de um segredo universal: ele prova que um Lobo e uma Raposa se amaram um dia com tanta força que a paixão deles acabou criando uma nova espécie, capaz de viver onde os outros perdem o fôlego, apenas um pouco mais perto das estrelas.



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